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  • Fernando Polonia

O TELEFONE

Esta crônica acima, de autoria de Rubem Braga e escrita em março de 1951, acentua bem a relação entre a proteção do consumidor e um fornecedor, destacando de forma impar o que vigorava naquela época. Nela, verifica-se a angústia de um consumidor em relação ao serviço prestado por um fornecedor. Vale para que possamos nos relembrar como eram as relações de consumo antes do advento do Código de Defesa do Consumidor.

O TELEFONE


“Honrado Senhor Diretor da Companhia Telefônica,


Quem vos escreve é um desses desagradáveis sujeitos chamados assinantes; e do tipo mais baixo: dos que atingiram essa qualidade depois de uma longa espera na fila.


Não venho, senhor, reclamar de nenhum direito. Li o vosso Regu­lamento e sei que não tenho direito a coisa alguma, a não ser pagar a conta. Esse Regulamento, impresso na página 1 de vossa interessante Lista (que é meu livro de cabeceira), é mesmo uma leitura que reco­mendo a todas as almas cristãs que tenham, entretanto, alguma propensão para o orgulho ou soberba. Ele nos ensina a sermos humildes; ele nos mostra quanto nós, assinantes, somos desprezíveis e fracos.


Aconteceu por exemplo, senhor, que outro dia um velho amigo deu-me o prazer de me fazer uma visita. Tomamos uma modesta cer­veja e falamos de coisas antigas – mulheres que brilharam outrora, madrugadas dantanho, flores doutras primaveras. Ia a conversa quente e cordial ainda que algo melancólica, tal soem ser as parolas vadias de cumpinchas velhos – quando o telefone tocou. Atendi. Era alguém que queria falar ao meu amigo. Um assinante mais leviano teria chamado o amigo para falar. Sou, entretanto, um severo respeitador do Regu­lamento; em vista do que comuniquei ao meu amigo que alguém lhe queria falar, o que infelizmente eu não podia permitir; estava, entretan­to, disposto a tomar e transmitir qualquer recado. Irritou-se o amigo, mas fiquei inflexível, mostrando-lhe o artigo 2 do Regulamento, segun­do o qual o aparelho instalado em minha casa só pode ser usado pelo assinante, pessoas de sua família, seus representantes ou empregados.


Devo dizer que perdi o amigo, mas salvei o Respeito ao Regula­mento; ‘dura lex sed lex’; eu sou assim. Sei também (artigo 4) que se minha casa pegar fogo terei de vos pagar o valor do aparelho – mesmo que esse incêndio (artigo 9) for motivado por algum circuito organi­zado pelo empregado da Companhia com o material da Companhia. Sei finalmente (artigo 11) que se, exausto de telefonar do botequim da esquina a essa distinta Companhia para dizer que meu aparelho não funciona, eu vos chamar e vos disser, com lealdade e com as únicas expressões adequadas, o meu pensamento, ficarei eternamente sem te­lefone, pois o uso de linguagem obscena configurará motivo suficiente para a Companhia desligar e retirar o aparelho.


Enfim, senhor, eu sei tudo; que não tenho direito a nada, que não valho nada, não sou nada. Há dois dias meu telefone não fala, nem ouve, nem toca, nem tuge, nem muge. Isso me trouxe, é certo, um certo sossego ao lar. Porém amo, senhor, a voz humana; sou uma dessas criaturas tristes e sonhadoras que passa a vida esperando que de repente a Rita Hayworth me telefone para dizer que o Ali Khan morreu e ela está ansiosa para gastar com o velho Braga o dinheiro de sua herança, pois me acha muito simpático e insinuante, e confessa que em Paris muitas vezes se escondeu em uma loja defronte do meu hotel só para me ver entrar ou sair.


Confesso que não acho tal coisa provável: o Ali Khan ainda é moço, e Rita não tem meu número. Mas é sempre doloroso pensar que se tal coisa me acontecesse eu jamais saberia – porque meu apare­lho não funciona. Pensai nisso, senhor: um telefone que dá sempre si­nal de ocupado – ‘cuém cuém cuém’ – quando na verdade está quedo e mudo na modesta sala de jantar. Falar nisso, vou comer; são horas. Vou comer contemplando tristemente o aparelho silencioso, essa esfinge de matéria plástica; é na verdade algo que supera o rádio e a televisão, pois transmite não sons nem imagens, mas sonhos errantes no ar.


Mas batem à porta. Levanto o escuro do magro bife e abro. Céus, é um empregado da Companhia! Estremeço de emoção. Mas ele me estende um papel: é apenas o cobrador. Volto ao bife, curvo a cabeça, mastigo devagar, como se estivesse mastigando meus pensamentos, a longa tristeza de minha humilde vida, as decepções e remorsos. O telefone continuará mudo; não importa: ao menos é certo, senhor, que não vos esquecestes de mim."

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